Estudo da Bíblia | 23 de setembro de 2020

Obediência

Grupo de pessoas no topo de uma montanha

Vivemos em um mundo obcecado pelo eu. Pressionados diariamente para desfrutar dos supostos benefícios de nossa cultura predominante de autossuficiência, autopromoção e autogratificação, confundimos autonomia com atitudes egoístas. Não surpreendentemente, em tal cultura de cada um por si, a prática da obediência está cada vez mais associada à perda de controle e submissão cega. Uma consequência dessa atitude é que quanto mais egocêntricos somos, mais indiferentes e alienados nos tornamos.

Ironicamente e paradoxalmente, esse egocentrismo cria outros tipos de submissão e dependência. Pense, por exemplo, em como somos obedientes à lógica do consumismo quando cedemos às tentações de comprar coisas que na verdade não precisamos apenas para satisfazer nossos desejos, não importa as desigualdades econômicas que ela reforce ou quais sejam as consequências. o ambiente. Considere também a facilidade com que podemos nos tornar submissos ou complacentes a certos pregadores eloquentes, mas enganosos, quando nossa intenção é ouvir apenas o que nos agrada.

Em sua defesa do evangelho aos Gálatas, Paulo nos oferece muitas dicas sobre o que é a obediência genuína, como ela se relaciona com nossa fé, quando pode ser distorcida ou se tornar perigosa, e por que é decisivo preservar a verdade do evangelho.

Preocupado com os ensinos disruptivos e divisivos dos judaizantes - cristãos judeus que, além do evangelho, defendiam a observância da Lei mosaica - Paulo escreve uma carta às igrejas na Galácia para refutar esses ensinamentos e reafirmar a absoluta suficiência de Cristo ( 1:6-9). Em suma, Paulo argumenta que a salvação oferecida a nós em Cristo por meio da fé é um dom gracioso de Deus, sem necessidade de obras complementares. Portanto, livres do domínio do pecado e não mais sujeitos à lei, podemos livre e voluntariamente decidir seguir a Cristo, em quem recebemos uma nova identidade para viver em novidade de vida com a ajuda do Espírito.

Logo no início da carta, Paulo defende a autoridade de seu apostolado e, consequentemente, a validade de sua mensagem - não com base em sua própria competência ou realizações, nem na submissão aos líderes da igreja em Jerusalém, mas principalmente em sua obediência ao chamado de Deus. pregar o evangelho de Cristo aos gentios. Não era uma questão de por que, mas de como a autoridade de Paulo era legítima: através do reconhecimento por outros de que a graça de Deus estava operando nele, transformando sua ardente devoção ao legalismo judaico em amor e obediência ao evangelho de Cristo.

Com isso aprendemos que a obediência é, acima de tudo, uma resposta de gratidão em reconhecimento da graça salvadora de Deus. Podemos abraçar o evangelho de Cristo e nos submeter à vontade de Deus, em primeiro lugar, porque somos livres para fazê-lo, não porque nos sentimos obrigados ou forçados a isso. Assim, a obediência não pode ser uma forma de obter o favor de Deus, como se fosse uma moeda de troca que deve ser trocada por alguma concessão. A obediência que Deus quer é aquela que vem de dentro de nós como uma resposta sincera e grata à graça de Deus, que se expande para todas as áreas de nossas vidas através dos frutos que produz.

Há, portanto, uma importante correlação entre obediência e fé no sentido de que, para ser genuína, tangível e discernível, a fé deve ser incorporada em termos éticos práticos – caso contrário, será inútil. Nossa atitude obediente em relação ao evangelho de Cristo é a ponte que reduz as distâncias entre o que dizemos e o que fazemos. Obediência é fé em prática, pois não podemos ser discípulos de Jesus a menos que o confessemos como nosso Senhor e Salvador e ajamos de acordo com sua práxis. Como destacaram os primeiros anabatistas, assim como a fé exige o compromisso de viver a ética radical de Jesus, a obediência por meio do discipulado confirma a fé.

No entanto, uma obediência sincera também deve ser evidência da operação ativa do Espírito Santo em nossas vidas. Se por um lado a obediência deve ser uma decisão firme de nossa parte, por outro seu contínuo fortalecimento e renovação vem com a ajuda do Espírito. A prática da obediência dá testemunho de nossa caminhada no Espírito, manifestada por meio de frutos como amor, alegria, paz, bondade, generosidade, fidelidade, mansidão e domínio próprio.

Muitos desses frutos, porém, chamam a atenção para a dimensão comunitária da obediência. Uma vida de obediência não se destina a nutrir uma espiritualidade orgulhosa, mas a criar um coração inclinado à compaixão e ao serviço. Pela graça de Deus, de fato nos tornamos instrumentos de justiça, mas nunca para auto-elogio ou recompensas individuais. Porque não pode ser realizada divorciada da prática da vida comunitária, a obediência só faz sentido se mediada pelo amor altruísta.

Essa obediência radical será sempre uma tarefa desafiadora, pois confronta nossos interesses pessoais, ou os interesses dos grupos aos quais pertencemos ou com os quais concordamos. Exige que façamos escolhas difíceis, que revejamos os privilégios e atitudes de que desfrutamos e relutando em desistir. Uma das questões subjacentes da controvérsia na Galácia foi a disputa cultural, social e étnica entre os judaizantes e os gentios convertidos. Ao exigir que os gentios adotassem os costumes religiosos judaicos, ignorando assim a suficiência de Cristo, os judaizantes deixaram clara sua intenção de impor à igreja uma espécie de piedade superior. Por causa de sua visão purista e excludente de obediência, os judaizantes enviaram uma mensagem como esta: “Só fazemos igreja do jeito certo. . . . As pessoas não serão totalmente aceitas por Deus a menos que acreditem e se comportem como nós.”

Em vez de nos tornar membros de um mesmo corpo, atitudes como essa nos tornam partidários de uma determinada facção – justamente o tipo de submissão que não devemos cumprir, nem por um momento! Conseqüentemente, nunca devemos agir como os guardiões da lei na Galácia, desprezando ou rejeitando nossos irmãos e irmãs em Cristo, considerando sua fé como imperfeita ou falha. Ao ignorar a radicalidade auto-doadora e amorosa da graça, corremos o risco de ficar presos em doutrinas não essenciais ou interpretações privadas que apenas perturbam e dividem a igreja.

Lembre-se de que uma das defesas mais apaixonadas, mas negligenciadas de Paulo da unidade da igreja está na carta aos Gálatas: “Em Cristo Jesus, todos vocês são filhos de Deus. Não há judeu nem gentio, nem escravo nem livre, nem homem e mulher, pois todos vocês são um em Cristo Jesus” (3:26,28).

A vida de obediência pela fé em Cristo nos permite perceber que nossa existência vai muito além dessa cultura de autossuficiência em que vivemos. autopercepção, nos liberta das limitações de nossas bolhas sociais e religiosas e nos ajuda a encontrar um terreno comum com os outros, particularmente aqueles que são diferentes de nós.

Alexandre Gonçalves é pastor licenciado da Igreja da Irmandade e educador social com especialização em proteção infantil. Ele ganhou seu mestrado em divindade do Seminário Teológico Betânia.